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sábado, 9 de julho de 2011

Cristianismo, secularismo e cidadania

A realidade do século 21 é que a democracia não é um valor ou uma prática universal, e a liberdade religiosa é uma exceção nos Estados teocráticos, confessionais ou ateus.
As restrições, discriminações, violências e migrações forçadas atingem milhões de cristãos sob a dominação do islamismo, do budismo, do bramanismo ou do comunismo. O Ocidente silencia diante das violações aos direitos humanos. Os interesses políticos e econômicos falam mais alto. A única ação política possível para os cristãos é a luta pela sobrevivência. O sonho de uma era de liberdade após a queda do Muro de Berlim ficou distante. O fato novo -- e inesperado -- tem sido o surgimento de uma nova onda de intolerância, discriminação e perseguição religiosa contra as expressões do monoteísmo de revelação (particularmente o cristianismo) no Ocidente pós-cristão, no mundo dito civilizado, no qual o cristianismo foi uma inegável variável histórica e cultural. Na Europa, o secularismo avançou rapidamente, como desdobramento do iluminismo e do racionalismo, e do vazio existencial trazido pelo liberalismo teológico, enquanto imigrantes não-cristãos e sem tradição democrática ocupavam o lugar dos nacionais que não nascem. Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia vão abjurando do seu passado cristão.

O multiculturalismo, o politicamente correto, a cultura da morte (aborto, não-procriação, homossexualismo, eutanásia), a agenda GLSTB lastreiam uma pós-modernidade que, negadora de qualquer verdade, afirma o individualismo, o subjetivismo e o relativismo. O único absoluto é o relativo, na licitude da “diversidade” ilimitada. Sob a falsa retórica da defesa de um desejável laicismo, minorias organizadas no aparelho do Estado, na academia e na mídia -- de fato partidária e leninista -- promovem essa ideologia nos aparelhos ideológicos (imprensa, entretenimento, educação) e coercitivos (legislação, judiciário, polícia). No Reino Unido, alguém recentemente afirmou: “Trocamos uma cultura religiosa de tolerância por uma cultura não-religiosa de intolerância”. Essa ideologia impõe o Estado contra a nação, e a lei contra a cultura. 

O argumento religioso é desqualificado -- vedada sua expressão no espaço público ou sua influência na formulação das políticas públicas -- empurrado “sob varas” para a irrelevância social das subjetividades ou para o espaço privado dos lares e dos templos. Afirmar os valores cristãos vai se tornando um ato de delinquência, e, dos direitos civis dos homossexuais, se passa para a obrigatoriedade da sua normalidade. Em uma globalização assimétrica e unilateral, com um centro e várias periferias, a intolerante ideologia do secularismo chega até nós, e já é uma realidade no Brasil, com militantes em todos os partidos e esferas do poder. 

A existência de uma expressiva população católico-romana e o crescimento de uma população protestante (ambas com convicções e líderes articulados) se manifestou nas reações necessárias -- embora muitas vezes desordenadas, incoerentes ou interesseiras -- nas últimas eleições presidenciais, no conflito com o secularismo que distorce o laicismo e tenta, mais uma vez, colocar o Estado contra a nação. O desafio está diante de nós, cada vez mais ameaçador, e de desdobramentos imprevisíveis. Enquanto isso, uma parcela do protestantismo, em guetos, ainda cultiva o isolacionismo, a alienação política e a irresponsabilidade cívica, a ascese individual e a busca do além-mundo.

Uma parcela crescente busca o poder e a prosperidade já nesse mundo. Grupos que, por muito tempo, cultivaram a alienação, chegaram à esfera pública sem reflexão bíblico-teológica ou conhecimento dos fatos e pensamentos sociais da igreja, pois o moralismo-legalismo substituiu a ética social, e a concepção de pecados sociais e estruturais. Com uma visão corporativista e clientelista, participam do mundano realismo (“é dando que se recebe”), com episódios escandalosos. Há quem salte de Davi à Dilma, presos aos paradigmas do antigo Israel, não escondendo uma tentação teocrática, “como cabeça e não como calda” (um rei ou um aiatolá evangélico...), carentes de humildade e de contribuições das ciências humanas. Históricos e pentecostais sérios, porém atingidos pelo pessimismo anabatista ou pré-milenista/pré-tribulacionista, ou pelo comodismo-consumismo, se esqueceram da visão de participação construtiva de uma cidadania responsável e promotora dos valores do reino de Deus, dos missionários pioneiros e de gerações de protestantes brasileiros; ou da visão de uma missão integral no mundo, onde, dentro das regras democráticas, devemos defender nossos lícitos interesses, e travar lícitos embates políticos pela preservação dos valores da nossa cultura, dos direitos naturais e do bem comum, tendo as instituições eclesiásticas, os indivíduos e os movimentos de inspiração cristã papéis diferenciados e complementares. O divisionismo e a desorganização dos evangélicos, contudo, apenas agravam o problema; mas, sob a Providência, uma nova realidade poderá surgir, para a relevância da igreja e o bem do país.

 Dom Robinson Cavalcanti é bispo anglicano da Diocese do Recife e autor de, entre outros, Cristianismo e Política -- teoria bíblica e prática histórica, A Igreja, o País e o Mundo -- desafios a uma fé engajada e “Anglicanismo -- identidade, relevância, desafios”
Fonte: Revista Ultimato maio/junho 2011

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